Vezes sem conta nos queixamos dos infortúnios, sejam eles quais forem. Pseudo-rebeliamo-nos contra todas as injustiças e tiranias com que nos deparamos no dia-a-dia, algumas das quais nos tocam profundamente no âmago com provocações sarcásticas e atrozes, deixando para trás cicatrizes irregulares, que se reabrem em fétidas feridas pungentes, cuja solução última não é mais senão o corte radical da gangrena que nos infecta sem dó.
No meio do queixume ensurdecedor, qual muro das lamentações de exacerbadas práticas, eis que há um ser que se levanta e se debate heroicamente contra o estoicismo e a prepotência altiva das elites, com nobre pretenção do bem colectivo, da justiça cega e maternal, como quem sempre ama o próximo e perdoa os faltosos, mas se mantem firme nos seus principios.
Esse ser, solitário errante por desconcertantes caminhos replectos de ciladas escondidas, ergue a sua voz, como quem chama por nós e nos ordena " caminhai, pois o caminho da luz te levará à liberdade e ao paraíso". O seu chamamento inconsequente faz lembrar a última águia real do Parque Nacional Peneda-Gerês, que indiferente à sua solidão, ou talvez num estado de negação, daquele que sabe mas não sabe, que é a recusa consciente para perceber o facto perturbador, que retira do seu ser não só a percepção necessária para lidar com os desafios externos, mas também a capacidade de valer-se de estratégias de sobrevivência adequadas, continua com atitude heróica ou estúpida teimosia a ecoar por vales e montes o chamamento do seu par, do seu parceiro de vida, com quem prosseguirá a continuidade da espécie, com quem atravessará o vale da morte e consiga a salvação única, o remedeio de todos os nossos males, a nossa sã sobrevivência.
Tal não existe. A sobrevivência, ou antes, a vivência da vida que é bela e com sentido de ser, depende unicamente de cada um de nós, de cada um dos nossos seres mais íntimos, do que buscamos na vida e procuramos em nós próprios. Olhamos o exterior e apontamos o dedo, afirmando com a certeza de inquisidores que lançam bruxas na fogueira da morte, que a culpa lá está, exterior aos nossos poderes e raios de acção. Esquecemo-nos, porém, que a felicidade suprema, o prometido paraíso, não é uma falácia de Deus, mas um erro dos homens, que teimam em olhar para fora quando deviam olhar para dentro.
Em nós se encontra a chave, a última fronteira inexplorada, o último chamamento, ao qual continuamente recusamos resposta, deixando-nos sós, solitários, abandonados, e eternamente descontentes, queixosos da nossa má sorte, dos erros dos outros, dos abusadores, dos poderes instalados, da infelicidade que somos e tanto adoramos.
A felicidade não é mais que a simples vivência dos sentidos, dos sentimentos, das coisas simples, mas acima de tudo, do que nós somos e do conhecimento que desenvolvemos de nós mesmos, e nos aceitarmos e vivermos cada dia pelo que o dia nos trás hoje, e não pelo que nos pode dar amanhã.
Se hoje terminasse, que triste tería sido o meu caminho: curto, pobre, vazio. Mas nesta curta vida que é a nossa existência neste universo que já se diz com fim, basta um dia, uma consciência mais profunda, para que tudo o resto faça sentido e ganhe um novo alento. Bastaram alguns dias, que perfizeram poucos meses, para tomar consciência do que sou e do que realmente preciso para viver. Se hoje terminasse, teria tido um caminho curto, pobre e vazio, mas com um fim radioso e cheio de sentido, que compensaria uma eternidade de todo o percurso anterior.
O último chamamento veio de dentro para dentro, e a resposta fez-se soar viva e arrebatadora, merecedora de exclamações de aplauso, e o resultado ultrapassou os limites físicos do ser, construíndo estruturas cristalinas de relações saudáveis e duradouras.
Não terminando hoje, há ainda um longo caminho por percorrer. Nesse caminho há ainda muito por onde resvalar, mas muito mais por onde fortalecer e crescer. A felicidade não é algo que dependa do exterior. Já cá está, sempre cá esteve. E hoje, ao vivê-la de forma tão livre e espontânea, encontro o que sempre procurei sem encontrar. Afortunados aqueles que encontraram sem procurar, ou tristes por não saberem o valor do seu achado.